quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A caça no Brasil e a venda de armas. Contradição?

Outro dia, recebi um e-mail com a seguinte pergunta: “Se a caça é proibida no Brasil, por que lojas diversas vendem armas exclusivas para caça?”.

Achei o questionamento válido e resolvi refletir sobre o assunto.

Na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), está claro:

“Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:

        Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa.”


Foto: pampasargentinas.com
Reserva de caça argentina: lazer?
Por outro lado, a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5197/67) ainda está vigente e contém o seguinte trecho:

“Art. 6º O Poder Público estimulará:

a) a formação e o funcionamento de clubes e sociedades amadoristas de caça e de tiro ao vôo objetivando alcançar o espírito associativista para a prática desse esporte.”


Não sou advogado, mas essa aparente contradição gera confusão. A prova está no Sul do país.

A lei dos anos 60 fez com que no Rio Grande do Sul fosse praticada, até a década passada, a caça amadorística. Em 2005, em decisão motivada por uma ação civil pública da ONG União pela Vida contra o Ibama, que tramitou na Vara Federal Ambiental e Agrária de Porto Alegre, a Justiça reconheceu que as caças amadorista, recreativa e esportiva não podiam ser liberadas nem licenciadas no Estado do Rio Grande do Sul pelo Ibama.

O órgão ambiental federal e a Federação Gaúcha de Tiro recorreram. Após alguma disputa no judiciário, em 2008, nova decisão manteve a proibição da caça no estado – o único que mantinha a prática.

“A 2ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) determinou ontem (13/3) a proibição da caça amadora no Rio Grande do Sul. Ao julgar recurso interposto pela organização não-governamental União Pela Vida e pelo Ministério Público Federal (MPF), o colegiado considerou que não ficou comprovado o rigoroso controle da atividade por parte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). (...)

Thompson Flores (relator do processo na Seção, desembargador federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz) considerou irrefutáveis as alegações do MPF, segundo o qual a caça amadorista não tem finalidade social relevante que a legitime. Além disso, o parecer ministerial argumentou que há suspeita de poluição ambiental resultante da prática, pois haveria emissão irregular de chumbo na biosfera. O metal tóxico, afirma o MPF, é encontrado na munição de caça e tem potencial nocivo, motivo suficiente para que o licenciamento da atividade fosse submetido a um Estudo de Impacto Ambiental que aferisse esse risco e as formas de evitá-lo.

A Procuradoria da República citou também um estudo realizado pelo departamento de zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) que concluiu pela nocividade da caça amadora ao meio ambiente. Além disso, a caça seria uma prática cruel expressamente proibida pela Constituição Federal e pela Declaração Universal dos Direitos dos Animais.”
– texto da matéria “TRF4 proíbe caça amadora no Rio Grande do Sul”, publicada em 14 de março de 2008 pelo Portal da Justiça Federal da 4ª Região

Vale ressaltar que a essa última decisão, vigente, ainda cabe recurso.

Apesar do atual estado de proibição da caça amadorística ou esportiva em todo o Brasil, há inúmeras lojas especializadas em artigos para caça, onde é possível encontrar armamentos para tal prática. Basta fazer uma rápida busca pela internet.

Em um anúncio de uma loja de Manaus (onde a caça nunca foi legalizada) encontrei o anúncio de uma espingarda com os seguintes dizeres:

“A CBC 199 tem um projeto arrojado que alia tecnologia, beleza e versatilidade. Seu preço acessível, juntamente com a facilidade de manejo e segurança, a torna uma arma ideal para os iniciantes na prática da caça. Ela também é indicada para defesa patrimonial, para o esporte de tiro aos pratos e para o lazer.”

Destaco aqui: “ideal para os iniciantes na prática da caça”.

Espingarda CBC 199: ideal para os iniciantes na prática da caça

No site da fabricante, a CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), existe uma seção específica para caça esportiva. E nela encontram-se os seguintes textos sobre a caça amadorista:

•    A caça amadorista e a sua contribuição na conservação da natureza.
•    A fiscalização da caça no estado do Rio Grande do Sul.
•    Educação e consciência do caçador amadorista
•    Construindo um futuro para a fauna nacional
•    O caçador e a natureza: convivência e responsabilidade
•    A Caça no Mundo

Nos textos, desatualizados pelo fato de ainda considerar a legalidade da caça no Rio Grande do Sul, é construído o raciocino em que a existência da caça regulamentada gera recursos para a conservação e as unidades de conservação, além de aliviar uma demanda da atividade dos praticantes (que poderiam exercê-la na ilegalidade).

No texto “O caçador e a natureza: convivência e responsabilidade” está escrito:

“Numa sociedade que se urbaniza e se distancia da Natureza a passos largos, poucas pessoas seguem convivendo tão de perto com o inestimável patrimônio natural quanto o caçador amadorista. Essa convivência é base da consciência que faz dele o pior inimigo da caça clandestina, o primeiro a reivindicar mais e melhor fiscalização, e a denunciar os abusos contra esse patrimônio que faz parte das suas melhores experiências de vida.

O que move o caçador amadorista, mais do que o ato da apanha de um recurso natural renovável - e em grande parte de futuro assegurado graças a sua própria contribuição - é justamente esse contato com o mundo natural, que muitos idealizam mas apenas os privilegiados como ele podem conhecer. E, em conhecendo, adequadamente defender e conservar.”


Tenho uma visão um tanto crítica aos parâmetros antropocêntricos que enxergam a natureza apenas como uma fonte de recursos para o ser humano, desprezando o direito – para mim intrínseco – de vida dos outros animais.

Há países, como África do Sul, Argentina e Chile, onde existem reservas de caça e o dinheiro arrecadado com as licenças e as taxas é investido em conservação. Muitos ambientalistas e técnicos defendem esse recurso. Essa contradição, para mim, é muito forte: matar por lazer para conservar...


Na Argentina, há período para a caça do puma (onça-parda)
Foto: pampasargentinas.com

O debate está aberto, tanto que a decisão do Rio Grande do Sul pode ser revertida. Cabe à sociedade brasileira decidir o modelo que deseja seguir.

Mas, voltando à questão inicial, permitir a venda de armas para caça amadorísta em um país que praticamente acabou com a legalidade dessa atividade é não querer acompanhar as mudanças.

- Leia a matéria do Portal da Justiça Federal da 4ª Região
- Conheça a Lei de Crimes Ambientais
- Conheça a Lei de Proteção à Fauna
- Leia o site da CBC (Caça Esportiva)
- Leia o site da CBC (Caça Amadorística)

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi Dimas! Parabéns pela matéria. Partilho plenamente do seu ponto de vista. Realmente é um absurdo quando dizem que a caça estimula a conservação. Para mim, uma pessoa que mata animais por esporte não tem nenhum apreço pela natureza e pela vida alheia.

As suas matérias estão ótimas.
Ass.: Gabriel Mello

Francisco Everardo Rodrigues disse...

Parabéns Dimas! matérias como essa e também qualquer outro tipo de ação que conscientize as pessoas em prol da natureza é que um dia acabarão com essas aberrações do comportamento humano.

Abraços!

Romulo Ribon disse...

A caça amadorista, planejada com base me critérios técnicos da ecoloiga de populações estimula a conservaçao na medida em que fomenta a proteçao de espécies cinegéticas(o caçador conscicente tem interesse que as populações sejam viáveis ao longo das gerações) e não cinegéticas (apenas algumas espécies são alvo do manejo conservacionista - de uso sustentável). Melhor faenda d ecaça do que de arroz (procurem e leiam os artigos do prof. D. Guadagnin _UFSM sobre o assunto).

Além disso, as taxas arrecadadas com a caça e tudo o que ele envolve, são aplicadas me programas de conservaçao e pesquisa tanto das espécies caçadas como das não caçadas.

Enquanto não se implementa a caça como ferramenta de menjo no Brasil, por pressão urbana, os produtores pequenos, médios e grandes amargam prejuízos devido a explosões populacionais de espécies ecologicamente oportunistas. Quem paga essa conta? Quem vive na terra e da terra.

Como o estado não resolve e cede à pressào da massa urbana, o produtor fica encurralado entre o prejuízo e o uso de métodos não convencionais (como veneno) de tentativa de controle.

Nos EUA, que há 100 anos amargavam a desolação que hoje assola boa parte do Brasil, há hoje 12,5 milhoes de caçadores. Nenhuma especie foi extinta desde que se regulamentopu a caça em clubes, agencias governamentais etc. Pelo contrario, as taxas e ativismo dos caçadores bancaram as pesquisas que permitiram a criaçao de inúmeroas reservas, recuperaçao de espécies como o bisão, o grou-americano e o condor-da-Califórnia, além da implementaçao de programs interncionais de proteçao de espécies migratórias

O Brasil rural, que sustenta a cidade, deve ter o direito de discutir decidir sobre o uso dos recursos em suas terras, dentro da lei, e sem espoliá-los.

Essa discussão ideológica de proteçao de indivíduos tem nos atrasado muito na conservaçao e uso sustentável de populações, que devem ser o foco da conservação.
Gatos, por exemplo, sào os maiores responsáveis por morte direta de aves. Estima-se que um gato consuma, por ano, cerca de 6 aves silvestres. Multiplique por milhões de gatos e ver-se-á o real impacto.

E então, é ético ter um gato em casa que vie perambulando pela sruas/quintais e jardins?

Novamente, a falta de embasamento técnico tem atrasado e prejudicado, por um lado, a conservaçao Brasil. Óbvio que precisamos de preservaçao também, mas, mais que isso, precisamos de um meio-termo. E ele está justamente na caça amadora.